segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

La passion par la parole*

* /A Paixão pela palavra
Largada na cama, cabelos desgrenhados, unhas roídas e por fazer, papéis amassados jogados ao chão, um caderno rabiscado ao lado. Palavras soltas, algumas sem nexo, outras nem tanto, vestígios da longa espera pelo telefonema que se transformou em carta.Uma escritora, cuja essência da vida é a paixão pela Palavra, objeto de seu maior prazer. Palavra que cria vida, anda sozinha, inventa histórias e povoa toda a mente. Impossível não escrever, não dividir. A Palavra lhe move todo um mundo, toda uma existência. La parole, Ah! La parole... Para ela, fazia muito mais sentido em francês, onde a palavra é força. É vida.
Era um dia chuvoso, nublado e triste. Incomum para o Rio de Janeiro, mas que se encaixava perfeitamente ao seu estado de espírito. Havia recebido uma carta-resposta de uma editora, pela qual ansiava publicar, e relutava em abri-la. Enfim, tomou a decisão. Rasgou o papel meio temerosa, por já saber o que a esperava, pois se fosse boa coisa não teria vindo por carta.“Embora sua obra apresente visíveis qualificações literárias, não temos interesse em publicá-la no momento. Atenciosamente...”. Há! Atenciosamente! Pensou, amassando o papel para desamassá-lo em seguida e guardá-lo na agenda. Poderia ter serventia no futuro, para se lembrar dos momentos difíceis. Como se ela não soubesse de que se tratava de mais um clone das outras centenas de cartas que enviavam mensalmente para outros tantos escritores frustrados. Se ao menos tivessem tido o trabalho de ler e dado um parecer verdadeiro... Afinal, uma crítica construtiva é sempre bem vinda. A aprovação é importante, mas não imprescindível. Pois ela sabe quem é.
O duro era lidar com a falta de consideração das pessoas, atrapalhando o seu processo criativo. Como a mãe que a interrompia religiosamente dez vezes ao dia.
- Alô! Tudo bem?
- Tudo mãe, e você? - já tinha se arrependido de perguntar.
- Eu tenho andado com muita dor na coluna... O ciático está me matando... E as varizes então? O médico me mandou colocar as pernas para cima...
Finalmente consegue desligar o telefone uma hora e meia depois. Mas o pior é agüentar as constantes perguntas:
- Você não trabalha?!Não trabalha... Como se fosse diversão ter a mente vinte e cinco horas por dia voltada para o texto ainda não escrito, ainda nem esboçado. Como se fosse moleza passar a madrugada escrevendo no computador, os dedos doídos, as costas mais ainda, os olhos acesos como faróis. E depois a insônia, o cérebro a mil que não a deixa dormir. A falta de idéias... As trezentas leituras por fazer. A angústia de constatar que nem em um milhão de encarnações conseguiria pôr toda a leitura em dia; os clássicos, os contemporâneos. E as re-leituras, então?
Procurou pensar que um dia ainda daria gargalhadas de tudo, quando fosse então reconhecida por senhoras idosas nas ruas.
- Você não é aquela escritora? Puxa! Minha filha te adora! Pode me dar um autógrafo? Não é para mim, é para ela sabe... Escreve aí: para Efigênia, com carinho.
Não estava mesmo inspirada, se é que isso existia, essa tal de inspiração. Achava até que não conseguiria mais escrever. Afinal, de que valia tanto esforço? Tantas horas, dias, meses, dedicados a um texto, se ninguém o leria? Não. Nunca mais escreveria. Talvez não fosse boa mesmo, não servisse para escritora. Sonho tolo. A palavra não fazia mais sentido e pouco significava agora. Melhor se dedicar a outra coisa, encontrar algo que a preenchesse. Mas o quê? Nada fazia mais sentido em sua vida do que escrever.Melhor então esfriar a cabeça. Decidiu dar uma volta pelo Pepê. Gostava de pisar descalça na areia da praia e não importava se estava nublado, um banho de chuva até que lhe faria bem.
Mas era grande conhecedora de si mesma para saber que ia passar por alguns dias depressivos, de comiseração pessoal. Tirou as sandálias e iniciou a caminhada.A chuva parou e o sol ensaiou uma tímida aparição. Havia um homem também descalço, de chinelos na mão, vindo em sua direção. Temeu que fosse um tarado. Corria um boato sobre um tarado se exibindo por aquelas bandas.
Se deu conta de que estava ficando paranóica, fantasiando demais. Era parte de sua personalidade, fantasiar. Esticou a canga que trazia na bolsa de crochê e sentou-se olhando despretensiosa para o mar. O homem parou ao seu lado.
- Oi.
A verdade era que o pseudo-tarado era muito bonito e ela não pode desviar o olhar.
- Você vem sempre aqui? Quero dizer, em dias chuvosos?
Não tinha vontade de conversar. Achou que era só ignorar e ele iria embora. Mas ela não podia lutar contra os seus instintos. Deu mais uma olhada nele e respondeu:
- Só quando preciso recarregar as baterias.
- Eu também. Posso? - perguntou apontando para a ponta da canga desocupada.
Que folgado! Claro que não!, pensou. Abriu a boca para dizer um desaforo, mas reparou que os olhos dele eram extremamente verdes.
- Pode. - tapou a boca com a mão. O que estaria acontecendo? Alguma força sobrenatural a impelia a falar?
Ele sorriu - sorriso perfeito - e sentou. Permaneceram ambos, olhares perdidos no horizonte.
- Bonito não é? - ele ousou quebrar o silêncio.
- O quê?
- O céu assim, essas nuvens encobrindo o sol.
- Ah, é. - ela estava distraída, meio tonta até, devia ser o perfume dele, cheiro de homem.
Iniciaram uma conversa animada e descobriram que gostavam das mesmas coisas: pôr do sol no Pepê, comida italiana, incensos indianos, lua cheia, filmes franceses. Marcaram um encontro para aquela mesma noite.
- Às nove então? - ele a olhou profundamente nos olhos e se despediu.
- Às nove.
Ela foi direto para casa e viu que tinha ainda três horas para se arrumar, era tempo de sobra. Jogou-se na cama e escreveu freneticamente cerca de cinco páginas. Esboço para um novo romance. Uma história sobre uma paixão avassaladora, em algum país exótico. Iniciaria as pesquisas necessárias no dia seguinte. Aquela noite era sua.
Toda a paixão é movida por outra grande paixão. Sendo assim, ela voltou a amar, a se inspirar. Afinal, a vida ainda valia a pena. A pena. O lápis. A palavra. La parole. Ah! La parole...

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito da forma como escreves. Tens uma escrita atual, envolvente. Parabéns!

Anônimo disse...

Flávia, quando puder visite meu blogger: heliorocca.blogspot.com
é um blogger de poesias, espero que goste. Helio Rocca