É a história de uma escritora que está no auge, com seus livros traduzidos e lidos em todo o mundo e que, por isso mesmo, não encontra a paz. É perseguida, adulada, caluniada. O livro, que nunca terminei, é o diário dela, que começa a ser escrito quando já não agüenta mais tudo isso e toma uma drástica decisão. A de retirar-se. Só não vou explicar como, por hora...
- Eu me lembro de tudo!
- Escreve?
- Não sei escrever. Desenho... Queria saber escrever... Pra poder esquecer.
Jean-Luc Godard (Je vous salue, Marie)
Decidi escrever esse diário no momento exato em que também decidi me despedir do mundo. Mas não podia me retirar sem deixar para você esse pedacinho de mim, um pouco do que sou e fui. Aqui escreverei o que me for acontecendo, o que me vier à mente. Aqui somente entrará o que me vier diretamente do coração. Faça dele o que quiser; queime-o se te fizer sentir melhor, depois de tudo que te fiz passar. Ou guarde-o, se não for esse o momento. Só te peço que não o leia antes da hora, antes de sentir um apelo, um ensejo muito grande, um desprendimento tamanho que o torne inatingível ao que daqui vier. Porque nestas linhas você encontrará de tudo, coisas boas e más. Algumas afirmações são verdadeiras, outras nem tanto. Mas tenha a certeza de que no momento em que o escrevi, era a mais pura verdade. Nem toda verdade é uma máxima. Nem toda verdade é eterna.
Já vivi muitas vidas e nem todas foram verdadeiras. O limite entre a ficção e a realidade não está apenas nos livros, mas também na vida. E comigo não foi diferente. Você ainda faz parte da minha história, um dia talvez entenda a minha decisão, talvez não. Sei que a decisão que tomei foi difícil, dura demais para você. Mas o que você nunca soube é o que eu tenho passado em todos esses anos, sendo adorada e odiada ao mesmo tempo. Sem saber em quem confiar, a quem amar. Sei que você não teve culpa de nada, mas também não posso me culpar pelo que aconteceu.
Não sou uma pessoa de uma idéia só, de uma única e inabalável opinião. E acho que isso incomoda muita gente. Gente que faz de tudo para estar por perto, e que nem sempre são sinceros. Eles pensam conhecer-me, pensam saber quem sou, ousam dizer coisas, as mais absurdas. Se me vêem feliz, logo querem saber o porquê. E se a felicidade é grande demais, se chocam, se ofendem e pedem maior comedimento. Ao verem-me introspectiva indagam também o porquê da tristeza e, se afirmo não estar triste, não se convencem, considerando-se até enganados ou traídos.
Personalidade ou estado de espírito? A quem quero enganar? Por que tentar agradá-los? Não compreendem. Não sabem o que é ter a arte nas veias. Não conhecem o valor da introspecção e da interação. Cada qual a sua hora.
Não. Não me conhecem. Apenas julgam conhecer. E talvez a culpa, em parte, seja minha. Essa minha paixão pela escrita. Essa minha loucura. E mesmo agora, não me vejo totalmente livre.
Escrever é desnudar-se
É virar-se do avesso
É morrer aos poucos
É revelar-se sem ser compreendida
É amar e não ser amada
É viver intensamente cada momento.
Escrever é uma necessidade, um vício. Vício esse eternamente alimentado pela insanidade de viver. Insanidade porque o mundo é insano. Estar no mundo, fazer parte dele é um exercício constante, onde a grande maioria já foi reprovada e não sabe.
Escrever é como uma confissão, é livrar-se da culpa, do pecado.
Meu estilo? Deixo a análise para os críticos. Escrevo.
Se a escrita não houvesse não seria possível existir, pois, como existir por completo se depois de todas as insanidades inaladas no dia não houvesse onde deixá-las? É preciso escrever para livrar-se delas. É preciso escrever para deixar de pensar. Livrar-se um pouco do excesso de pensamentos, se libertar.
Saber-se escritor é estar certo de uma coisa, ninguém jamais o conhecerá plenamente. Julgam conhecer- te por considerarem nossas obras uma extensão de nossas vidas. O que não é de todo errado, mas o que lhes falta é a exata compreensão do alcance de uma idéia, o limite entre a ficção e a realidade.
Mas, afinal de contas, o que é real?